Andando
Vou comendo com os pés a cidade desnuda de gente, máquina desativada
Noite alta, cercanias de um eclipse
A melancolia saborosa das árvores muito altas, salpicadas de luz amarela e poeira
O cheiro do vento
As memórias coladas a tantos espaços
O pensamento flutua entre meus ressentimentos
Minhas ansiedades
Meus projetos
E a calma com que as raízes partem o concreto das calçadas
O fantasma de algum amor passado sob os pilotis
A familiaridade da estrada
Caminho e faço caminho
Pouso pé após pé
Desvio o corpo de galhas caídas, prevendo a distância do passo, medindo o impulso
Saltando e compensando o peso com uma perna elevada
Danço
Ultimamente, andar, pincelar o papel com água e cores,
Mover os dedos sobre os furos de uma flauta doce
São as modalidades de dança que pratico
Toda a vida de treino corporal intenso, as horas de tônus muscular preciso
De visualização de resultados
Hoje culminam na maneira como o punho direito colabora com o ataque do mínimo sobre a nota dó
Ou no jeito com que todo o antebraço produz o arco que ficará manchado de tinta sobre a tela
Afinal, sempre me pareceu que a dança feita nos palcos
Era um preparo para manter a consciência dançarina em cada movimento, útil ou expressivo,
Intencional ou bêbado
Sempre me soou evidente que a prova dos nove não era o aplauso,
Mas a permanência desse estado de dança
Quando nem olhares me mediam nem espaços me induziam
Dançar hoje é carregar o filho nas costas através das ladeiras
É brincar de desequilíbrio com os solavancos do ônibus
É respirar e manter certo rumo
Mesmo com o desfazimento de tantas trajetórias
Despojado dos sonhos de outros tempos
Seja por falta ou por excesso de intento.